Artigo: Libertas quae sera tamen

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Sexta, 15 Junho 2018 07:29

Artigo: Libertas quae sera tamen

edBruno

A Magna Charta Libertatum, assinada em 1215 pelo Rei João da Inglaterra, inaugurou um longo processo histórico que se convencionou chamar de constitucionalismo, ao estabelecer a limitação do poder absoluto do monarca frente as garantias e liberdades individuais.

Em um de seus artigos de maior expressão está disposto (tradução livre a partir de uma versão em inglês):

"Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra."

No Brasil, como resultado desse processo histórico, os “anos de chumbo” findaram-se com o advento da Constituição de 1988, que consagrou, formalmente, o modelo garantista, ao estabelecer, logo em seu art. 1º, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, bem como ao condicionar, em seu art. 5°, inciso LXI, a segregação da liberdade às hipóteses de flagrante e de ordem fundamentada de autoridade judiciária, desde que presentes os requisitos e pressupostos constantes da legislação infraconstitucional.

Contudo, todo esse rico sistema de garantias acaba coexistindo com um crescente e preocupante discurso de ódio encampado por uma sociedade que parece viver em regime de guerra civil permanente.

Aterrorizado pela exploração midiática da violência, um número cada vez maior de pessoas guiadas por sentimento nem um pouco nobre, que encontra no ódio infundado o seu ápice, e distorcendo tudo o que vê, está cada vez mais disposto a “fazer justiça com as próprias mãos” como mecanismo para conter a violência, sem perceber que está a lançar ao chão marcos civilizatórios constituídos a ferro e fogo.

Mas o que, de significativo, fez com que o legado libertário da Magna Carta fosse açoitado pelo “novo tempo do mundo”[2], em que qualquer tentativa de construção de uma sociedade livre, justa e solidária parece se esfacelar diante da grotesca realidade social, tingida pela violência desmedida e por desvios morais de toda ordem?

A abertura dos mercados, a onda de privatizações, as taxas de juros exorbitantes, o regime cambial vulnerável, a redução das verbas orçamentárias sociais, o desemprego, os índices elevados de inadimplência civil e empresarial, o sucateamento do aparelho estatal, além da subjugação do Poder Judiciário, são algumas das facetas do modelo neoliberal, implementado na país há mais de uma década.

O resultado dessa equação bombástica não poderia ser outro: enfraquecimento das instituições, desordens provocadas pela desregulamentação econômica, pela pulverização do trabalho assalariado e alarmante aumento da pobreza e a criminalidade.

Nesse cenário, a política da criminalização exsurge como a única política pública verdadeiramente eficaz para conter a grande população empobrecida e contemplada com o figurino social da criminalidade.

Isso acarretou, paulatinamente, a supressão do Estado econômico, o enfraquecimento do Estado social e o fortalecimento e glorificação do Estado penal.

Em outros termos, a era de ouro do Estado Garantista foi deixada para trás, florescendo um Estado Mínimo, em que os investimentos em ensino, saúde, habitação, cultura, lazer e segurança pública são escassos.

Em verdade, somente diminuindo o verdadeiro abismo a separar as classes sociais neste país conseguiremos diminuir os índices de criminalidade, ainda que isso importe superação de um modelo econômico excludente, que fomenta o egoísmo e a luta por supremacia.

Até lá, cabe a cada um de nós, operadores do direito, diante da complexidade de facetas que envolvem as relações de poder, manejar o próprio arcabouço jurídico vigente de forma criativa, buscando conferir novos conceitos aos institutos normativos, abertos por sua natureza, fazendo prevalecer os ditames da nossa constituição, de aspiração democrática, rejeitando a ideia absurda de que o agigantamento do Estado Repressor é a solução para todos os males que nos afligem.

Certas verdades são simples. O verdadeiro problema é saber de que lado estamos: daqueles distantes de si mesmos e da realidade social; ou daqueles que buscam respostas novas e criativas para problemas sociais, encontrando-se consigo mesmo e comprometendo-se com o próximo, certos de que o fracasso de cada membro da sociedade significa o seu próprio fracasso.

A história dirá.


[1]     Juiz de Direito da Vara de Execuções e Contravenções Penais da Comarca de Porto Velho

[2]     Arantes, Paulo Eduardo – O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência. 1 ed., São Paulo: Boitempo, 2014.

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